As pessoas que fazem o consumo de água não tratada estão totalmente expostas a inúmeras enfermidades como a febre tifoide, xistossomose e a infecção urinária, alertou, em declarações à Economia & Mercado, a especialista em clínica-geral, Saránia Sapwanale, referindo-se aos vários casos de consumo de água imprópria que ultimamente registam-se em vários pontos de Luanda, uma realidade que se agrava quando se sai da capital do país.
O consumo de água não tratada, para as mulheres, de acordo com a médica, pode provocar infertilidade ou ainda infecção urinária, que quando não medicada ou mal curada, pode provocar o nascimento de crianças com mal formação congénita, bem como o surgimento de abortos espontâneos.
Para alertar sobre a gravidade da situação, em Angola, a especialista fez referência a um caso recente verificado no Kwanza Sul, onde cerca de 80% das crianças observadas durante um programa de intervenção social realizado no município da Quilenda por médicos voluntários ao serviço da “Fundação Dar de Coração”, apresentavam “um quadro de diarreia fruto do consumo de água imprópria”.

Gritos de socorro por todo o lado
Na comuna da Barra do Kwanza, a população “faz das tripas o coração” para “matar a sede” e garantir a hidratação do organismo.
Segundo Filipe Dala, de 60 anos, 23 deles vividos na comunidade do Tapo – zona ribeirinha que dista a cerca de 42 quilómetros do centro da cidade de Luanda –, são vários os casos de doenças diarreicas e infecções na pele que já chegaram a terminar em óbitos.
“Quando vim morar neste bairro, existiam apenas duas casas”, recordou, afirmando que a população consome água das cacimbas desde que os primeiros habitantes começaram a povoar a localidade adstrita à comuna da Barra do Kwanza.
Para o ancião, o principal motivo das doenças e de alguns óbitos registados naquela comunidade está ligado ao consumo de “água não tratada”. Filipe Dala, que exerce o cargo de coordenador da comissão de moradores do bairro, justificou que antes de falecerem, as vítimas “queixavam-se de dores de barriga”.
“Foi há um ano que perdemos duas pessoas que viviam aqui”, afirmou, visivelmente constrangido com a situação, acrescentando que as vítimas estavam com “muita diarreia de sangue”, sendo que uma delas acabou por falecer a caminho do Centro Médico dos Ramiros.
A situação, segundo afirma o nosso interlocutor, é do conhecimento das autoridades locais, nomeadamente da Administração Comunal, tendo salientado que às vezes a comunidade beneficia do apoio das autoridades, que se resume na disponibilização de uma cisterna, “mas que infelizmente requer uma comparticipação financeira por parte dos moradores para abastecê-la”.
Para minimizar a carência de água potável na comunidade do Tapo, conta a fonte, a Associação Juvenil de Apoio às Comunidades (AJACOM) – organização filantrópica sem fins lucrativos – que junto de empresas parceiras apoia a referida comunidade desde 2016, doou, através da empresa angolana Norafrica, um reservatório com capacidade para armazenar 10.000 litros de água potável.
Mais tarde, segundo ainda Filipe Dala, a empresa brasileira Núcleo de Comunicação (NC), passou a assegurar o abastecimento do recipiente através de apoio financeiro de 18.000 kwanzas por mês.
Entretanto, apesar do esforço feito por estas empresas, o problema da água, reforça o nosso interlocutor, prevalece na localidade, tendo em conta o número de consumidores e a forma intermitente de abastecimento do precioso líquido.
“Quando o dinheiro para comprar água para a cisterna demora ou a água do tanque acaba, a população recorre as cacimbas novamente”, lamentou, justificando que 10.000 litros “não chega” para acudir a carência, sendo que dura apenas duas semanas na época de frio e menos de uma semana na época de calor.
Camiões cisternas garantem acesso à água

Ainda no município de Belas, mas no distrito do Morro dos Veados, que entre outros, superentende os bairros Bela Vista, Matadouro, Mundial, Padaria das Eleições, Macuia, Baixa do Maruvo, todos localizados entre a estrada nº 100 (EN-100) e a Avenida Fidel de Castro Ruz (Via Expressa), também deparam-se com a falta “gritante” de água potável.
Segundo Manuel Couto, morador do bairro Bela Vista, há mais de cinco anos, que optou por não gravar entrevista, além da “onda de assaltos” a mão armada e da falta de corrente eléctrica, o bairro é caracterizado pela negativa com o dilema do acesso à água potável.
Curiosamente, Manuel Couto trabalha como camionista há mais 30 anos e, nos últimos anos, dedica-se à venda do precioso líquido a partir de um camião cisterna. Ainda segundo a fonte, a população depende dos camiões cisternas para ter acesso a água que nem sempre é potável, tendo em conta “a má-fé de muitos motoristas de camiões cisternas”.
“A carência da água acentua-se mais no tempo chuvoso, dada a dificuldade que as vias de acesso apresentam”, disse, salientando que a dificuldade de acesso aos bairros acaba por ser outro dos obstáculos que onera o preço do precioso líquido na circunscrição.
O aumento no país de pacientes com tais sintomas, segundo Saránia Sapwanale, está relacionado com a exposição excessiva do consumo de água imprópria.
A vice-presidente da “Fundação Dar de Coração”, Margareth Jacinto, afirmou que nos últimos anos, a Fundação tem vindo a intervir mais com acções paliativas no sector da saúde, considerando o grau de exposição a doenças em que se encontram as populações das comunidades intervencionadas.
Em entrevista à Economia & Mercado, a responsável da instituição criada com o objectivo de ajudar essencialmente as comunidades a suprir carências a “nível da saúde e educação”, disse que o quadro, a nível da maior parte das comunidades, “é transversal e alarmante”, sobretudo nas províncias de Cabinda, Cunene, Cuando Cubango e Cuanza Sul, onde têm vindo a desenvolver acções sanitárias.
Já a médica especializada em clínica-geral, Saránia Sapwanale, explicou que tal como acontece com as demais patologias, as doenças contraídas pelo consumo de água não tratada. A cólera, de acordo com a técnica de saúde, é um dos exemplos de doenças cujo quadro evolui aceleradamente. Ou seja, esclareceu, o consumo frequente e excessivo de água imprópria ou de qualquer substância inadequada para o bem-estar do organismo pode debilitar o “sistema imunológico”.
“Para uma doença manifestar-se requer uma exposição por largo tempo e depois por uma considerada quantidade de bactérias”, referiu, acrescentando que quando uma doença manifesta-se é sinónimo de que o sistema imunológico faliu.
“Vamos usar todos os meios ao nosso dispor como lavar as mãos, aplicar sistemas de filtragem, produtos de desinfestação de água ou mesmo ferver a água”, apelou.
Privados podem comercializar água potável

Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam que 44% da população angolana não tem acesso a fontes de água apropriada para beber, sendo que apenas 32% das pessoas que vivem nas zonas rurais consomem água apropriada, enquanto 66% da população urbana tem acesso ao líquido precioso devidamente tratado.
Os dados que revelam nitidamente o acentuar da assimetria entre a zona urbana e rural, constam do Relatório dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, Indicadores de Linha Base, 2018 – referente aos Objectivos Globais para o sector das Águas –, assumidos por Angola no âmbito da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU).
Com efeito, a alteração em 2015, da Lei Geral de Electricidade 14/96, as empresas privadas podem entrar no “negócio da água” através da aquisição de licenças de exploração, distribuição e comercialização proveniente de fontes de água apropriada para beber.
A informação foi avançada ao Jornal de Angola pelo presidente do conselho de administração (PCA) do Instituto Regulador dos Serviços de Electricidade e Água (IRSEA), Luís Mourão.
Actualmente existem algumas empresas privadas com investimentos feitos no sector das águas, muitas delas estabelecidas no âmbito de parcerias público-privadas (PPP) e outras de carácter privado, como é o caso da empresa angolana Nandus CAR, Lda.
Para Augusto Tavares, sócio gerente da empresa que foi fundada em 2001, e que opera no sector da água desde 2006, o surgimento de mais empresas privadas no sector depende da “vontade política”. “Havendo vontade política neste sentido, os bancos financiariam e outros agentes económicos se interessariam”, considerou, defendendo mais PPP, sendo que os custos de investimentos para montar o negócio rondam o milhão de dólares, revelou.

“Penso que para o Governo não seria muito difícil”, salientou, referindo-se sobre a viabilidade de financiamentos de projectos que, na sua visão, facilitam o fornecimento de água à população, o que evitaria a instalação de “tubagens muito longas” e o transporte de água em camiões cisternas “sem condições de higiene”.
Com uma capacidade para captar, tratar e bombear cerca de 100 metros cúbicos de água purificada por hora, do qual utiliza apenas 50% do total disponível, o empresário salientou que “há custos adicionais” relativos a manutenção com limpezas das membranas de purificação que por sinal “não são baratas”. “Um jogo de membranas custa à volta de 60.000 euros, mas bem tratadas com a limpeza periódica dura muito tempo”, informou.
A Economia & Mercado contactou a direcção da Empresa Pública de Águas de Luanda (EPAL) no dia 31 de Julho do ano em curso, através de uma carta recepcionada às 9:13 da mesma data, na espectativa de conseguir uma entrevista para receber esclarecimentos sobre o sector das águas, mas até ao fecho desta edição 180, onde pode ler a versão impressa dessa reportagem, todos os esforços nesse sentido foram gorados.