Há muito que venho alertando, nas minhas crónicas e reflexões públicas, para o perigo silencioso das milícias digitais, dos memes maliciosos e das novas formas de manipulação política em Angola. No texto “Os Memes e a Identidade Profissional”, publicado em 2020, e mais tarde, em 2022, em “As Milícias Digitais: O Novo Rosto da Manipulação”, adverti que o humor pode perder a inocência e transformar-se num instrumento de condicionamento colectivo. O que então parecia uma previsão sociológica hoje é uma realidade que se impõe.
1. Quando a piada vira arma
Com a massificação da IA, os memes, vídeos e áudios manipulados tornaram-se parte do arsenal político contemporâneo. Em Angola, o fenómeno atingiu novos patamares: fotos de cidadãos desconhecidos começaram a circular ao lado de Lionel Messi antes mesmo do amistoso entre as selecções de Angola e Argentina. As montagens eram tão convincentes que muitos, de boa-fé, acreditaram na veracidade das imagens.
Essa é a magia do momento. A IA cria lembranças antes dos acontecimentos. E, pior, fá-lo com precisão suficiente para enganar milhares.
Circula igualmente um áudio atribuído ao inconformado activista Gangsta 77 — mais um entre tantos áudios fabricados ou distorcidos que surgem ciclicamente, sobretudo quando se trata de figuras não alinhadas ao regime.
Noutras latitudes, através de deepfakes, caricaturas geradas por inteligência artificial fazem Donald Trump cantar, dançar, chorar ou admitir crimes que nunca confessou. A fronteira entre realidade e ficção dissolve-se na tela, e é aí que reside o perigo. Empresas, gestores públicos, políticos e personalidades podem ver a sua imagem destruída antes mesmo de terem acesso ao conteúdo que os difama.
Pierre Bourdieu alertava para a força simbólica: aquilo que repetidamente vemos tende a tornar-se verdade social, mesmo que seja objectivamente falso. Shoshana Zuboff, ao analisar a era digital, mostrou como a produção e circulação de dados manipulados cria novas formas de “poder instrumentarista”. E Joseph Nye, no campo da estratégia política, lembra que a batalha contemporânea é sobretudo uma disputa narrativa.

Em Angola, esta disputa está em curso — e cada “piada” contém uma mensagem oculta que molda percepções, desgasta reputações e influencia rivalidades políticas.
2. O novo factor de risco: inteligência artificial sem literacia digital
O impacto das tecnologias de IA torna-se ainda mais grave num contexto em que parte significativa da população tem baixa escolaridade e reduzida literacia digital, especialmente quando caem nas mãos de indivíduos e grupos sem escrúpulos.
Como Raymond Williams explicaria, a cultura é também um campo de recepção — e, quando o público não está preparado, torna-se mais vulnerável à manipulação.
Num ambiente onde se consome informação fragmentada, apressada e emocional, memes substituem análises; áudios substituem jornais; vídeos adulterados substituem factos. E assim, emoções passam a ter mais força que evidências.
3. Quando as milícias digitais criam o problema e o Estado tenta “resolver”
É neste cenário que o Governo angolano tem demonstrado intenção de criar uma lei para regular as fake news. A iniciativa poderia ser legítima e necessária, não fosse o paradoxo evidente: o próprio Governo, percebe-se com clareza, através de estruturas informais e milícias digitais simpatizantes, tem sido um dos principais produtores e amplificadores desse tipo de conteúdos.
A título de exemplo, recorde-se o recente episódio envolvendo o activista Jeiel de Freitas, alvo de ataques e difusão de informações falsas após ter desmontado, de forma rigorosa, toda a estratégia argumentativa — aquilo que os filósofos classificariam como sofismas — apresentada por um membro do governo no programa Defensores das Políticas do Executivo vs. Críticos, promovido pela página digital XAA.
O que se seguiu foi revelador: várias páginas associadas a figuras próximas do partido no poder apressaram-se a retirar “truques da cartola” e a difundir conteúdos manifestamente falsos, numa tentativa de denegrir a imagem de Jeiel. Tudo isto pelo simples facto de o activista ter ousado confrontar, com firmeza e dados concretos, aquele que muitos consideram falar muito sem, na prática, dizer grande coisa — e por ter apresentado factos que colocam o governo numa posição claramente desfavorável.
Vivemos a era da pós-verdade, termo popularizado por Ralph Keyes e politizado por Lee McIntyre: não importa o que é verdade, importa o que parece ser verdade
A sociologia política chama a este fenómeno autocracia líquida: aparenta combater a desinformação, mas utiliza mecanismos de desinformação para fins estratégicos.
O que vemos, portanto, é o feiticeiro a tentar legislar contra os seus próprios feitiços. A pergunta impõe-se:
será esta lei um mecanismo de protecção da sociedade ou uma armadilha que acabará por se virar contra quem a concebeu?
O “feitiço” pode, de facto, virar-se contra o “feiticeiro”. Porque, ao institucionalizar o combate às fake news, o Estado abre a porta para que os próprios cidadãos, a sociedade civil e os órgãos internacionais possam exigir-lhe coerência: quem legisla para punir a desinformação deve ser o primeiro a não a praticar.
4. A fronteira cada vez mais estreita
Vivemos a era da pós-verdade, termo popularizado por Ralph Keyes e politizado por Lee McIntyre: não importa o que é verdade, importa o que parece ser verdade. As tecnologias de IA — sobretudo nas mãos de pessoas sem preparação — aceleram essa fronteira fluida.
As consequências?
i) Radicalização dos jovens nas redes.
ii) Rivalidades políticas alimentadas artificialmente.
iii) Percepções sociais moldadas pelo ridículo e não pelo racional.
iv) Substituição do debate público por entretenimento político.
A identidade profissional, política e cívica passa a depender da reputação digital — facilmente destruída por um meme ou áudio falso.
5. O desafio da maturidade democrática
O país enfrenta um duplo desafio:
i) alfabetizar digitalmente a população; e
ii) responsabilizar, sem selectividade, todos os que produzem desinformação — inclusive os actores políticos que se escondem atrás de contas anónimas.
Como diria Habermas, a democracia só existe plenamente quando o espaço público é racional, livre e transparente. Sem isso, governar torna-se administrar percepções e não realidades.
E o que fazer?
Num país que ambiciona modernizar a sua economia, atrair investimento e fortalecer instituições, enfrentar esta ameaça é urgente. As respostas necessárias incluem:
i) Educação digital formal e comunitária, centrada na verificação de fontes.
ii) Regulação específica para IA em campanha política e produção de conteúdos sintéticos.
iii) Mecanismos independentes de fact-checking, com credibilidade técnica.
iv) Responsabilização legal de quem produz ou difunde deepfakes difamatórios.
v) Ética digital incorporada nos currículos e nas organizações.
Em jeito de conclusão, a nova economia da manipulação não é apenas tecnológica; é sociológica, política e institucional.
A mentira tornou-se sofisticada, rápida e barata.
A verdade tornou-se insuficiente sem mecanismos de defesa.
Estamos perante um desafio que ultrapassa o entretenimento digital: trata-se de proteger a confiança, o investimento, a reputação e a própria integridade da vida democrática.
A tecnologia evoluiu. Os riscos também. A responsabilidade — essa continua a ser nossa.

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