Isaac Paxe e Olívio Kilumbo são rostos conhecidos da sociedade civil angolana. O primeiro é docente e já ocupou cargos de destaque no sistema de Educação no País, enquanto o segundo interrompeu a carreira de professor para se dedicar à função de deputado à Assembleia Nacional.
Ambos partilham a mesma causa: a afirmação do cabelo crespo ou da carapinha dura como uma manifestação da espiritualidade africana, um conceito, entretanto, muitas vezes, confrontado e contestado por círculos influentes da sociedade angolana, entre os quais governantes.
As margens opostas socorrem-se de conceitos desencontrados de civilização para, cada um, ‘levar a água ao seu moinho’.
Desde já, este não é um problema qualquer. Que o digam os inúmeros alunos que, no País, já se viram impedidos de aceder a uma sala de aulas por apresentarem um cabelo tido como contrário às regras emitidas pelas próprias autoridades de ensino.
Há, inclusivamente, registos, sem resposta ainda conhecida, de petições junto da Assembleia Nacional do cunho de activistas e encarregados de educação para um parecer do órgão legislativo em relação a proibições de uso de crespo ou da carapinha dura nos estabelecimentos escolares.
Isaac Paxe, um docente universitário assumidamente defensor dos ideais africanistas, revela, em entrevista à Economia & Mercado, que já sentiu na pele a ‘ira’ de pessoas que “ainda não conseguiram libertar-se das amarras da colonialidade”.
“[Não conseguiram libertar-se igualmente] de todo aquele acervo [da colonialidade], que é a celebração dos símbolos e as marcas eurocêntricos, principalmente no caso particular do cabelo, dos padrões de beleza e estética, que é uma construção sócio-política”, atira o antigo director do Instituto Nacional de Formação de Quadros da Educação.
É pouco simpático ao termo ‘uso’ para se referir a quem adopte o cabelo crespo, um nome que, igualmente, contesta: “A questão começa justamente quando nós falamos de ‘uso’ do cabelo. Eu não uso o meu cabelo, o meu cabelo é parte de mim, da mesma maneira como o são o nariz e as orelhas. Crespo talvez seja um rótulo, eu prefiro a expressão natural, porque eu não aplico nenhum químico para transformar o meu cabelo. Eu tenho o meu cabelo natural, celebro-o como parte de mim”.
Eu não uso o meu cabelo, o meu cabelo é parte de mim, da mesma maneira como o são o nariz e as orelhas. Crespo talvez seja um rótulo, eu prefiro a expressão natural
Para o docente, há uma tendência de se associar a adopção da exibição do cabelo natural como “uma moda, uma onda”. Entende que não deve tratar-se de moda, mas de “uma questão de celebração da natureza do nosso corpo, sendo o cabelo uma das partes historicamente negada por razões que desconhecemos a fundo, mas que estão assentes no preconceito gerado da colonialidade e, principalmente, do ideal estético eurocêntrico”.
Afirma que já viveu experiências de estigma devido à condição do seu cabelo, situações em que as pessoas olhavam para si de forma estranha, face, sobretudo, ao perfil de professor numa universidade pública, ao cargo que desempenhou no Governo e à figura de participante em debates públicos.
“Posso dizer que já perdi contratos, já perdi convites para eventos, justamente porque o ‘Comité de Avaliação’ julgava que eu não era o modelo padrão de estética que eles queriam para o evento”, confidencia.
E eis a reacção ao tratamento que recebeu: “Claro que o máximo foi sentir pena desse grupo de pessoas e reforçar a convicção do trabalho que temos estado a fazer junto dos nossos estudantes, junto das comunidades que ainda nos conseguem ouvir, educar as pessoas sobre o que somos”.

“Nem sequer vamos falar de casos de empregos”
Isaac Paxe considera a problemática de negação de cabelo natural “muito fracturante”, que explica “experiências amargas”, como “indicadores de violação do direito à educação” de crianças e adolescentes, devido à condição do cabelo.
“Muitas crianças e adolescentes são punidas nas escolas, o que é uma violação profunda do seu direito à educação, que é um direito humano, simplesmente por se aceitarem conforme são”, denuncia.
“Nem sequer vamos falar de casos de empregos, porque muitas questões são subjectivas, as pessoas nem sequer se apercebem se a razão da rejeição foi simplesmente por ter o cabelo na sua condição natural”, acrescenta Isaac Paxe.

“Algumas pessoas olhavam para mim [como deputado] com algum desconforto”
Olívio Kilumbo persegue o segundo ano na sua estreia como deputado à Assembleia Nacional, eleito à luz da iniciativa Frente Patriótica Unida (FPU), enquadrado no Grupo Parlamentar da UNITA.
Kilumbo, um politólogo com larga experiência na docência, terá sido o primeiro deputado a ocupar um assento parlamentar carregando crespo na cabeça.
Explica que, no início, muitos dos seus colegas olhavam para o seu cabelo com preocupação, e alguns “questionavam em surdina” e outros havia que o afrontavam.
“Alguns deputados olhavam para mim com algum desconforto, não conseguiam conceber como é que um Parlamento, no caso o nosso - infelizmente, o nosso -, concebia um deputado que não usasse o perfil que é comum: cabelo curto, barba arranjada, etc”, relata.
Alguns deputados olhavam para mim com algum desconforto, não conseguiam conceber como é que um Parlamento, no caso o nosso - infelizmente, o nosso -, concebia um deputado que não usasse o perfil que é comum: cabelo curto, barba arranjada, etc
Recorda que, numa das aulas de Protocolo que frequentou no quadro da formação aos deputados, o tema foi justamente o uso do cabelo: “Uns olhavam para mim e eu só ficava também a olhar para eles”.

Olívio sublinha o facto de, na condição de 4.º presidente do Grupo Parlamentar da UNITA, se sentar ao lado da também docente universitária Mihaela Webba, a deputada que usa dreadlock (rasta) e percorre a sua terceira legislatura na AN.
Olívio Kilumbo está determinado a terminar o mandato de deputado com a sua ‘carapinha dura’ sobre a cabeça, e observa, com ironia à mistura, que não acredita que, com “mil e um problemas que o País tem”, o Parlamento “venha a criar uma deliberação por causa” do seu cabelo.
E conclui: “Ter o cabelo comprido, carapinha, crespo ou rasta é uma escolha pessoal que reflecte a conexão com as minhas raízes africanas. Além disso, o meu cabelo é uma representação visível do respeito pela diversidade cultural presente na Assembleia Nacional, onde diferentes culturas e tradições se encontram”.

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