IFC Markets Live Quotes
Powered by
3
1
PATROCINADO

Os oceanos e a atmosfera não podem continuar a ser as lixeiras da era industrial!

Paulo Magalhães
16/9/2025
1
2
Foto:

Embora a África seja responsável por apenas cerca de 4% das emissões globais de gases com efeito de estufa, está entre as regiões mais vulneráveis às alterações climáticas.

Em 2015, na cidade de Paris, 195 países comprometeram-se a limitar o aquecimento global a 1,5 °C, ou pelo menos bem abaixo de 2 °C. No entanto, os dados científicos mais recentes mostram que, em vez de abrandar, as temperaturas estão agora a subir ao dobro da taxa das décadas anteriores. Com este nível de emissões, a linha vermelha crítica do Acordo de Paris de «bem abaixo de 2 °C» poderá ser ultrapassada ainda mais cedo — em 2037 — daqui a apenas 12 anos. Estamos quase sem tempo para evitar os 2 °C. Para ganhar mais tempo para parar o aquecimento global a curto prazo, enquanto nos esforçamos para reduzir as emissões a médio e longo prazo, é necessário remover CO₂ da atmosfera, sem que destas remoções resultem mais direitos de realizar novas emissões. Levar a cabo essa nova atividade implica que dela resultem direitos e deveres, o que por sua vez implica um novo enquadramento jurídico. Em abril de 2023, na IX Reunião de Ministros do Ambiente da CPLP que teve lugar em Lubango, Angola, foi aberta a discussão a nível internacional em torno do reconhecimento do Clima como um Património da Humanidade, porque os oceanos e a atmosfera não podem continuar a ser as lixeiras da era industrial!

Desde junho de 2023 que os termómetros registam de forma permanente um aumento superior a 1,5 graus da temperatura do planeta, em relação ao período pré-industrial. Em 2022, o registo era de +1,2 graus, e em junho de 2023 disparou em +0,3 graus, atingindo os 1,5 °C, e em 2024 atingiu os 1,6 °C de temperatura média anual. Entre 2023 e 2024, a temperatura dos oceanos disparou e bateu todos os recordes, quer no Atlântico Norte, quer no hemisfério sul, principalmente junto da Antártida, acelerando muito o derretimento do gelo. O objetivo do Acordo de Paris, de conter o limite do aumento da temperatura média global bem abaixo dos 2 graus, idealmente no limite de 1,5 graus até 2050, será ultrapassado já nesta década. Com as atuais tendências de emissão, as estimativas indicam que o mundo poderá atingir um aumento de 2 °C de temperatura global nas próximas décadas, com alguns especialistas alertando para um aumento de 2,5 °C nas próximas duas décadas. Segundo o recente UNEP Emissions Gap Report, em todos os cenários possíveis, “será necessária uma futura e dispendiosa remoção em larga escala de dióxido de carbono da atmosfera para atenuar a ultrapassagem das metas de Paris.”

Em outubro de 2024, numa carta aberta de cientistas climáticos de todo o mundo, é afirmado que a corrente do Atlântico pode entrar em colapso em breve, “com impactos devastadores e irreversíveis, especialmente para os países nórdicos, mas também para outras partes do mundo”. Estas mudanças abruptas, que escaparam aos modelos matemáticos mais convencionais, foram no entanto consideradas como uma possibilidade real pelas Ciências do Sistema Terrestre, que estudam o comportamento sistémico do nosso planeta, em termos de trajetórias, entre estados alternativos separados por fronteiras, que são controladas por processos não lineares, com interações e “feedbacks”. Num famoso artigo de 2018, de Will Steffen, Johan Rockström e colegas, estes afirmavam que “mesmo que a meta do Acordo de Paris delimitar o aumento de temperatura entre 1,5 °C a 2,0 °C, não podemos excluir o risco de que uma cascata de ‘feedbacks’ possa empurrar o sistema terrestre de forma irreversível para um caminho de “HotHouse Earth”.

Mas, independentemente das diferentes abordagens científicas, a Física sabe que atingir os 1,5 graus de temperatura média global significa que os oceanos evaporam muito mais água, que há muito mais energia na atmosfera e nos oceanos, aumentando a turbulência e os furacões, que as ondas de calor, secas, cheias e incêndios disparam, o que por sua vez, num processo de retroação, dá origem a maiores emissões e menores remoções de CO₂ da atmosfera, aumentando ainda mais a temperatura e a disrupção.

Domínios que não pertencem a ninguém

A todo este cenário, não será com certeza estranho o facto de académicos de direito internacional, como John Vogler, afirmar que “O ‘estado de natureza’ para os bens comuns globais é res nullius”, ou como Kathryn Milun, que “os oceanos e a atmosfera se tornaram nas lixeiras da era industrial”. Segundo Milun, “legalmente descritos como espaço não estatal, fora da soberania territorial, os bens comuns globais não são protegidos como domínios que pertencem a todos, res communis. Em vez disso, o direito internacional trata-os como domínios que não pertencem a ninguém, res nullius". A lixeira.

Perceber porque isto acontece, porque os dois grandes sistemas de circulação global são na realidade tratados como coisa de ninguém, é uma condição estrutural para perceber porque chegámos a este ponto, porque já não conseguimos sair dele, e que qualquer possível adaptação e/ou mitigação do problema poderá implicar intervir nesta questão estrutural.

Atualmente, os territórios por onde oceanos e atmosfera circulam possuem estatutos jurídicos bem definidos (dentro ou fora dos territórios sujeitos à soberania dos Estados). Mas esta classificação jurídica dos territórios omite o facto de estes serem simultaneamente o espaço geográfico por onde os dois grandes sistemas de circulação global operam. Esta sobreposição de duas realidades distintas – uma estática e territorial reconhecida pelo direito (soberania), e outra qualitativa/funcional (digamos, o software do planeta) não reconhecida pelo direito - pelo facto desta última ser global e indivisível, tem como resultado uma nebulosa zona jurídica indefinida.

Para todos os efeitos, o aspeto funcional é “externo” aos sistemas jurídicos e económicos internacionais, criando-se desta forma um vazio jurídico – a lixeira - para onde a economia envia “externalidades negativas”, como a poluição, e os ecossistemas enviam “externalidades positivas”, como se os fatores que suportam a vida nos fossem “externos”. Sendo “externos” à organização das sociedades humanas, não se geram efeitos jurídicos e, portanto, também são invisíveis para a economia. Isto é, quando se realiza um dano não se gera um dever de reparar, e quando se realiza um benefício não se gera um direito a ser compensado. Nesta lógica, quem polui menos ganha um crédito que pode vender, e quem possui um ecossistema que gera benefícios a todos, não recebe nada por isso. Mais grave ainda, quem possui ecossistemas, só lhe resta a alternativa de destruí-los e transformá-los em mercadorias, para gerar riqueza, entrando num ciclo vicioso de destruição. E a pergunta é: existe hoje maior criação de riqueza para as sociedades do que a provisão de serviços de ecossistema, como a remoção de CO₂ da atmosfera?

Depois de, em 1988, Malta ter proposto na ONU que o clima fosse reconhecido como Património Comum da Humanidade, como estávamos numa época em que ainda era cientificamente impossível definir e descrever este aspeto funcional, optou-se por uma solução semântica, abordando o problema em vez de proteger o bem em questão. Desta forma, não é o clima que é protegido e gerido como um bem de todos, mas antes as alterações climáticas que são consideradas uma mera Preocupação Comum da Humanidade. Isto é, a solução foi um acordo em que se tenta colocar menos lixo numa lixeira, sem alterar o estatuto da própria lixeira.

E ainda hoje, no Acordo de Paris, continuamos reféns desta opção. Porque não se geram direitos e obrigações, comercializam-se quotas e créditos de poluição (fluxos), mas não existe nenhum sistema de incentivos à realização de remoções de CO₂ em excesso (emissões negativas) no bem que deveria ser reconhecido como comum, mas que na realidade é res nullius. Assim, é sempre necessário existirem novas emissões para que seja reconhecido um valor nas remoções de CO₂, que na verdade correspondem apenas a neutralizações. Nesta lógica, quem polui menos vende o crédito, e quem limpa para todos, limpa num vazio jurídico – o res nullius, a lixeira – e, portanto, ninguém paga e ninguém limpa o que é de ninguém, e não existe nenhum enquadramento legal ou sistema de incentivos económicos para abordar o problema da acumulação de CO₂ na atmosfera.

Criação de valor dependente de uma nova emissão de CO₂

Quando estamos numa situação de stock de CO₂ acumulado em excesso na atmosfera (426 ppm, partes por milhão), muito acima dos limites máximos de segurança (350 ppm), limitar a estratégia de ação à redução e neutralização de fluxos não chega. Mas para além desta limitação objetiva, existe um outro problema associado, que é da maior relevância: uma estratégia apenas centrada no controlo dos fluxos implica que a criação de valor fique sempre dependente da realização de uma nova emissão, que terá a capacidade de pagar a remoção. Isto é, não se reconhece a verdadeira criação de riqueza que os serviços de ecossistema significam para a economia, perpetuando uma economia que necessita de realizar novas emissões para que se reconheça a criação de valor na remoção, e esta possa ser paga. Para todos os efeitos, as remoções de CO₂ que não correspondem a neutralizações de emissões correntes ou futuras (emissões negativas) são feitas num vazio jurídico – o sistema climático – onde não lhes é reconhecido qualquer valor.

Alterar este quadro e lançar um projeto de “remoção em larga escala de dióxido de carbono da atmosfera”, tal como apontado necessário no último relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP), criando uma economia capaz de restaurar ecossistemas com esse objetivo, implica reconhecer que para que existam direitos e obrigações decorrentes dessa atividade de limpar a atmosfera, é necessário que haja um sujeito (a humanidade) e um objeto sobre o qual esses direitos e deveres possam ser exercidos (o aspeto funcional do planeta – Clima).

Africa Is on the Frontline of Climate Change- Martin Armastrong /Statistahttps://www.statista.com/chart/28136/index-scores-for-climate-resilience-of-african-countries/

África está na linha da frente das alterações climáticas

Embora a África seja responsável por apenas cerca de 4% das emissões globais de gases com efeito de estufa, está entre as regiões mais vulneráveis às alterações climáticas. Para além disso, possui ecossistemas de primeira importância à escala global e um vasto potencial de energia renovável. Isto é, África possui um enorme potencial de provisão de “serviços públicos globais”, como é a provisão de serviços de ecossistema de interesse global, como é a remoção de CO₂. Remover CO₂ de forma deliberada e ativa da atmosfera não é mais uma “opção futura”, mas antes um contributo fundamental para ganhar mais tempo para parar o aquecimento global a curto prazo, enquanto nos esforçamos para reduzir as emissões a médio e longo prazo. Porque sem um enquadramento jurídico favorável, não existe atividade humana; remover em “larga escala” implica que desta atividade resultem direitos e deveres. Um passo relevante para alterar este cenário foi a consagração no Artigo 15º, alínea f) da Lei de Bases do Clima Portuguesa (ver vídeo), que estabeleceu o objetivo do reconhecimento do clima estável como Património Comum da Humanidade junto das Nações Unidas. Esta discussão foi alargada para os países de língua portuguesa, e em abril de 2023, na IX Reunião de Ministros do Ambiente da CPLP que teve lugar em Lubango, Angola, o assunto foi discutido e fez parte da sua Declaração Final. Num mundo cada vez mais polarizado, a construção de um projeto que promove uma mudança necessária, de uma economia que só minimiza danos para uma que investe ativamente na regeneração do planeta, limpando de forma ativa a atmosfera e os oceanos, atenuando as disparidades entre países e criando justiça entre gerações, é ou não um projeto que vale a pena prosseguir? Não será este um interesse de todos?