Debaixo de um sol ardente, Nuno Cruz conduz o balanço do dia. Os voluntários, em pouco mais de meia dúzia, cercam-no e ouvem-no, paciente e atentamente. Tão humanos quanto à equipa de reportagem da revista Economia & Mercado, os voluntários demonstram, no entanto, uma resiliência ao intenso calor de gerar perplexidade.
São muitas as vezes que o repórter e o fotojornalista procuram por um refúgio para fintar o sol e a desidratação. A poeira que se agita a cada circulação automóvel ou em reacção à brisa do mar, a metros, agudiza as dificuldades de quem, como a equipa da E&M, se revele estranho ao ambiente da principal e reabilitada rua da Chicala I, em Luanda.
“Não encarem isso como uma actividade para ganhar dinheiro. Isso, meus caros, é uma causa, uma causa nobre”, através da declaração vigorosa do presidente e fundador da ONG Nação Verde percebe-se, rapidamente, o sentimento de firmeza e causa cívica enraizado em cada voluntário que tem no mar o ente a proteger com ‘unhas e dentes’.
Nuno & companheiros cumprem mais uma de incontáveis jornadas de limpeza no mar. Afinal, está nesta rotina a razão da resiliência ao adverso clima de uma quarta-feira, 07 de Maio. O briefing, que marca o desfecho de mais um round de activismo ambiental, acontece num ambiente ‘familiar’: ao lado, um contentor de lixo e um ecoponto contendo no interior resíduos sólidos vários.
O lugar está pronto para receber mais plásticos, latas, papel e vidros acabados de serem recolhidos pelos voluntários da organização Nação Verde. É o culminar de uma jornada iniciada há quase uma hora, antecipada com um briefing para estabelecer o protocolo da jornada: formação de equipas, distribuição por áreas e objectos a recolher na beira do mar da Chicala I, na costa luandense.

O relógio marca 11 horas. Nem parece ainda uma manhã. Os chapéus sobre a cabeça dos voluntários não servem, por isso, apenas para exibir as credenciais da ONG. São acessórios úteis para mitigar os raios de um sol abrasador. Os coletes timbrados e os crachás reforçam a identidade. Usam luvas para se protegerem dos objectos a recolher.
Os voluntários da Nação Verde caminham, em fila indiana, em direcção ao mar. São em número de oito. Apenas duas mulheres. “Nada de distração!”, dirige-se, com voz autoritária, o supervisor Magalhães ao catador profissional Paulo, que lhe obedece com um silêncio brusco que suspende uma conversa preliminar com a equipa de reportagem. “Não tens autorização para dar entrevista”, reforça, já com voz sensibilizadora, o supervisor.
Nuno Cruz lidera a marcha para mais uma jornada em defesa do meio ambiente no mar. É o primeiro a colocar resíduos num saco plástico grande. Os outros seguem-no. A jornada ganha dinamismo. O frenesim é de autêntica mão… na areia, nos resíduos. A recolha é feita com cuidado. Não sendo muito frequente, mas há registos de presença de objectos cortantes.
Não há margem para distracção. Estão todos concentrados. A areia do mar denuncia uma invasão de lixo de todo o tipo. Os plásticos dominam, à distância, a mancha de resíduos que se estende por dezenas de metros de areia. Vêem-se garrafas, papéis, trapos, calçados… tantos resíduos que, indesejados, a força do mar trata de os devolver à terra.
A brisa do mar traz cheiro de peixe. A zona é piscatória. Os ‘homens dos anzóis’ olham serenos para a jornada já intensa dos voluntários da Nação Verde. Testemunham aquilo, semanalmente, quase sempre frios, serenos. Olhares inocentes, mesmo diante do degradante cenário de poluição.
Há, em parte, razões para o semblante tranquilo dos pescadores, maior parte dos quais moradores dos casebres perfilados como que embarcações atracadas na beira do mar. Dizem-se inocentes neste quadro diário de crise de saneamento no mar. Apontam o dedo acusador para moradores das zonas urbanas.
“Todos os resíduos que descartamos involuntariamente, de forma ignorante, infelizmente, vão desaguar no mar, por conta das valas de drenagem que estão ligadas directamente ao mar”, atira, inconformado, Nuno Cruz, à guisa de absolvição dos moradores de responsabilidades sobre o atentado ambiental aqui exposto.
Todos os resíduos que descartamos involuntariamente, de forma ignorante, infelizmente, vão desaguar no mar
João, morador da zona, tem um percurso de seis anos de coabitação com redes, anzóis e produtos do mar. Afirma que a oferta do mar já não é a mesma em relação àquela que encontrou quando aqui chegou. No momento em que a fartura foi substituída por ‘tempestade’, o pescador artesanal tem de lidar com o aumento da responsabilidade: tem, agora, dois filhos menores por sustentar.
É confuso quando vaticina sobre as razões da falta de peixe no mar. Tem consciência que o motivo pode residir na poluição do mar. Mas é para a pesca semi-industrial que o prognóstico de João mais aponta. Expõe um conflito de jurisdição.
“Eles vêm aqui pescar com barcos grandes numa zona onde sempre colhemos o peixe e outros produtos do mar. Levam quase tudo. Já reportámos à Capitania, mas, mesmo com inspecções, insistem nesta pesca, infernizando a nossa vida”, descarrega, com frustração visível nos olhos, o pescador artesanal. Não há ânimo nem para uma fotografia.
Do outro lado, a jornada de limpeza aproxima-se do ‘cair do pano’. O lixo, persistente em muitos pontos, explica a razão das acções regulares dos voluntários da Nação Verde. Afinal, as jornadas, ainda que longas e com número expressivo de voluntários, não são suficientes para vergar os resíduos. Contudo, a praia exibe um cenário mais acolhedor do que o encontrado no início da jornada de limpeza.
Um a um, cada voluntário carrega o seu saco, já todos cheios de resíduos sólidos devidamente separados. Este cuidado na classificação dos resíduos revela um trabalho sistematizado e sustentado. Os resíduos são depositados nos ecopontos e, depois, seguem para uma base de tratamento, antes de serem vendidos para reciclagem.
“O grupo que recolhe os resíduos recicláveis separa-os dos inúteis, que vão parar aos contentores comuns. Os valores arrecadados da venda para reciclagem servem para sustentar o projecto. Trabalhamos como uma economia circular, onde entram vários actores, desde o fabricante dos ecopontos, o designer, o pintor, o catador, os da triagem dos resíduos, motoristas que levam resíduos... todo o mundo ganha algum dinheiro”, com suor a escorrer no rosto, conta Nuno, enquanto dirige a marcha da equipa para o depósito dos resíduos.
O destino é um ecoponto localizado no interior da comunidade, cuja instalação foi patrocinada pela empresa Infraway. A companhia, com vocação para construção civil, acabou de se juntar à iniciativa originária da ONG que se identifica como sem fins lucrativos.
O mentor dos ecopontos destaca a conquista do novo parceiro. Mas assume que a lista, integrada por empresas petrolíferas, como as do Bloco 17, é ainda curta para assistir às agendas das organizações que, pelo território nacional, se levantam, com o fito de filantropia e de causa cívica, para defender o meio ambiente.
Nuno Cruz apela à necessidade de as empresas inscreverem nos seus programas de responsabilidade social o apoio às causas defendidas pela Nação Verde e congéneres. Enumera que, fruto deste apoio, a sua organização implementou e controla cerca de 150 módulos de ecopontos em Luanda, 60 dos quais instalados próximos de zonas balneares.

Um ecoponto é formado por quatro módulos, representando, cada um, uma linha específica de depósito de resíduos sólidos. Um protocolo devidamente definido: o vermelho é para plásticos, o amarelo acolhe latas, o azul recebe papéis e o verde serve para depositar tudo quanto é vidro.
“O nosso objectivo é cortar o percurso dos resíduos sólidos para o mar, daí a nossa estratégia em colocar ecopontos em zonas urbanas, no interior das comunidades, nos locais de grande concentração de pessoas”, explica o ambientalista. Deixa, no entanto, claro que não é só pela recolha de resíduos que se descreve o perfil da ONG.
Sublinha, a título de outro pilar, as acções de sensibilização levadas a cabo pelos cerca de 70 voluntários cadastrados na organização: “Este projecto tem como objectivo sensibilizar e conscientizar os diferentes actores da sociedade sobre a necessidade de promover, de adoptarmos boas práticas de deposição de resíduos sólidos urbanos nas comunidades”.
E deixa um alerta que sustenta a determinação da causa: “As nossas acções a nível das praias têm a ver, sobretudo, com o alerta mundial que aponta que, se não reduzirmos o consumo de plástico, em 2050, teremos mais plásticos do que peixe no mar. Portanto, a biodiversidade marinha está a sofrer uma pressão humana muito forte por causa da gestão dos resíduos sólidos urbanos”.

As campeãs do lixo: Praia Savana ‘rende’ Mabunda
Não obstante os raios da sua acção já atingirem províncias como Zaire, Benguela e Huambo, a Nação Verde tem em Luanda o seu ‘Estado-Maior’ de combate a práticas inimigas do ambiente. As razões são óbvias: a capital do País acolhe um número significativo de centros comerciais, o que determina o consumismo das famílias e, por arrasto, a produção de resíduos diversos.
Nuno Cruz rebate o cenário crítico de os mares de Luanda absorverem parte significativa de lixo oriundo de zonas urbanas. Informa que as acções desenvolvidas pela ONG no litoral luandense permitem depreender que Mabunda, o principal mercado do peixe a céu aberto da capital do País, foi, por largos anos, a mais suja praia de Luanda.
“Com as limitações na venda impostas recentemente pelas autoridades devido à cólera, Mabunda deixou de ser a praia com mais resíduos sólidos. A praia que nesse exacto momento enfrenta um desafio tremendo em termos de poluição de resíduos é a da Savana, localizada por detrás da ENAP”, aponta o líder da organização surgida em 2017.
À reportagem da E&M, o ambientalista, convidado à Conferência dos Oceanos sobre Economia Azul, a decorrer de 9 a 14 deste mês em Nice (França), precisa que, diariamente, o reporte de recolha de resíduos a partir de todos os ecopontos aponta para cerca de 2 toneladas de garrafas plásticas.
“Quer dizer que estamos a tirar cerca de 2 mil quilos de garrafas plásticas todos os dias; e, numa semana, cerca de 12 toneladas só de garrafas plásticas. Na orla marítima do Benfica, em termos de garrafas plásticas, já conseguimos tirar, num espaço entre três e seis meses, mais de 30 toneladas de garrafas plásticas, estou a falar de 30 mil quilos, ou seja, mais de 100 milhões de garrafas plásticas”, especifica Nuno Cruz.

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