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Angola: Entre a Prepotência do Poder e a Urgência da Compaixão Social

Moniz Sebastião
10/6/2025
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Cedida pela fonte

Como sociólogo, não posso deixar de alertar: normalizar a miséria é um risco civilizacional. Estamos a perder, aos poucos, o nosso sentido de humanidade.

Na sua cerimónia de tomada de posse, a 26 de setembro de 2017, João Lourenço declarou: "Ninguém é suficientemente rico que não possa ser punido, ninguém é pobre demais que não possa ser protegido".

Após essa afirmação, uma aura de esperança invadiu os discursos públicos e privados. Muitos acreditaram que, finalmente, o País viraria uma página marcada por décadas de guerra, corrupção sistémica e exclusão social. No entanto, o que se assistiu – e ainda se assiste – é uma crescente deterioração das condições de vida, uma elite cada vez mais insensível e um povo cada vez mais vulnerável.

A história ensina-nos que, após longos períodos de conflito, os Estados que se redescobrem têm duas opções: investir na reconstrução social ou perpectuar a lógica da dominação. Infelizmente, Angola parece ter enveredado pelo segundo caminho. A guerra de 1992 não só destruiu infra-estruturas, como também fragmentou os laços comunitários. Surgiram então os “meninos de e na rua” – um fenómeno novo no contexto angolano – que jamais foi corrigido. Claro que a guerra não é o único factor que empurra crianças para a rua. Mais de três décadas depois, esses “meninos” tornaram-se homens marginalizados ou foram substituídos por outros, vítimas do mesmo abandono estrutural.

Parece que o Lar Kuzola, em Luanda, é a única instituição pública vocacionada para acolher menores em situação de vulnerabilidade. Estes, ao atingirem os 16 anos, são entregues à própria sorte, acabando alguns por regressar às ruas por falta de alternativas. Das instituições privadas com o mesmo cariz, lembro-me do Centro Padre Horácio "Arnaldo Jensen", também em Luanda. Ao nível das outras 20 províncias ‘continentais’ e das 21 no total, de acordo com a nova divisão política-administrativa, é importante destacar que existem outras iniciativas valiosas em Angola. 

No Bié, por exemplo, o Centro de Acolhimento Aldeia Jeová Nissi dedica-se a crianças em situação de vulnerabilidade, com foco especial nas crianças com albinismo. A Assembleia de Deus Pentecostal "Ebenezer" no Cuito-Bié também tem contribuído significativamente para essa causa.  Em Benguela, a Casa do Gaiato é outra instituição notável. Além dessas, as Aldeias de Crianças SOS nas cidades do Lubango, Huambo e Benguela representam um modelo sustentável de acolhimento e atendimento para crianças que perderam ou estão em risco de perder os cuidados parentais.

A ciência social mostra-nos que o ser humano, diferente dos animais, organiza-se em sociedades, estabelece regras, cria instituições e projecta o futuro. Onde falhámos? Falhamos na organização, na empatia e no compromisso colectivo. Vivemos hoje numa Angola onde a pobreza não é apenas material, mas multidimensional: falta comida, falta saúde, falta afecto, falta dignidade. Assistimos a pessoas com e sem distúrbios mentais a disputar contentores de lixo como fonte principal de alimentação. Isso não é normal. Não é aceitável. É um grito colectivo que todos fingimos não ouvir.

Erving Goffman, na sua obra sobre instituições totais, mostrou-nos que o desvio social exige estruturas de acolhimento e cuidado, e não abandono. Um Estado que deixa os seus cidadãos dementes e famintos à mercê do lixo falha na sua mais elementar função: proteger os mais vulneráveis.

Pior ainda é ver pessoas mentalmente sãs, organizadas por turnos para aceder aos restos de comida nos contentores. Estas pessoas – homens, mulheres e até crianças – criaram uma ordem informal de sobrevivência, tornando-se o que a socióloga Martine Xiberras denominou socialmente excluídos. Acrescento: caçadores de restos. Trata-se de uma racionalidade na miséria, uma ética da exclusão que envergonha qualquer consciência humanista, científica ou cristã.

No tempo colonial, com todos os seus males, não existiam meninos de rua nem pessoas a dormir em portais ou a revirar contentores. Como é possível que, após quase 50 anos de independência, tenhamos regredido em aspectos tão básicos da vida social? A culpa não é apenas do passado. É, sobretudo, do presente paralisado por uma governação surda, autoritária e autossuficiente, que se recusa a dialogar, a escutar e a agir com urgência.

E como se não bastasse esse quadro desolador, é ainda mais inaceitável que no ano em que se comemoram os 50 anos da independência, se mobilizem recursos públicos para condecorar indivíduos com critérios obscuros e sem consulta pública, enquanto não existe qualquer estratégia emergencial para alimentar milhares de cidadãos em situação de vulnerabilidade extrema. Isto revela uma inversão completa de prioridades e um desprezo inadmissível pelo sofrimento humano.

Mas não basta denunciar. É preciso agir.

Se o governo não ouve, cabe à sociedade civil organizar-se. É hora de criar associações de voluntariado, montar cozinhas comunitárias, recolher excedentes alimentares, identificar focos de vulnerabilidade e restaurar alguma dignidade à vida humana. Cada um pode contribuir: uns mobilizando recursos, outros cozinhando, outros ainda distribuindo as refeições.

É preciso promover o voluntariado como expressão concreta de cidadania. Aliás, uma das condições para a empregabilidade no sector público e privado deveria ser, por exemplo, a apresentação de certificado de trabalho voluntário — um indicador de humanismo e de comprometimento social.

As igrejas, que acumulam dízimos e ofertas semanais, devem ser chamadas à responsabilidade. Que usem parte dos seus recursos para criar dormitórios e centros de acolhimento, cumprindo assim o mandamento do amor ao próximo e o cuidado pelos pobres, que atravessa toda a tradição bíblica e cristã. Não basta orar por Angola. É preciso servir Angola.

As empresas também têm um papel. A responsabilidade social empresarial não se resume a campanhas publicitárias. Precisamos de acções concretas: apoio a projectos de educação sexual, formação profissional, maternidade responsável, reintegração de ex-moradores de rua, entre outros. O lucro não pode ser mais importante que a vida.

Os cidadãos comuns, com alguma capacidade financeira, são também chamados a contribuir regularmente, seja com bens, tempo ou conhecimento.

Como sociólogo, não posso deixar de alertar: normalizar a miséria é um risco civilizacional. Estamos a perder, aos poucos, o nosso sentido de humanidade. A religião ensina-nos que “amar ao próximo como a si mesmo” é a essência da vida. A ciência social diz-nos que ninguém se realiza numa sociedade em colapso moral. A filosofia recorda-nos que a dignidade humana é um valor inviolável. E a história castiga os que, tendo poder para mudar, escolheram ignorar.

Angola precisa de uma nova consciência colectiva. Uma consciência que rejeite a prepotência, que combata a indiferença, que recuse a resignação. Precisamos de líderes que ouçam, de cidadãos que se mobilizem, de instituições que sirvam. Mais do que nunca, é tempo de agir.

Porque não é normal que, em pleno século XXI, o contentor de lixo seja a nossa resposta à fome. E muito menos que, em pleno cinquentenário da independência, a medalha valha mais do que o pão.